Entrevista:O Estado inteligente

sábado, maio 20, 2006

Chernobyl, 20 anos - José Goldemberg




Chernobyl, 20 anos

José Goldemberg

Em abril de 1986, um dos quatro reatores nucleares da então União Soviética, localizados nas vizinhanças da pequena cidade de Chernobyl, a 80 quilômetros de Kiev, capital da Ucrânia, explodiu e lançou na atmosfera uma enorme quantidade de radioatividade, equivalente a dezenas de explosões nucleares do tipo que arrasou Hiroshima e Nagasaki.

O reator nuclear foi construído para gerar eletricidade e não houve nele uma explosão nuclear: reatores não explodem como bombas. O que ocorreu foi uma explosão do tipo convencional, devida ao superaquecimento de vapor de água de resfriamento, que destruiu parte do prédio, provocou um grande incêndio e lançou pelos ares parte dos produtos radiativos que são produzidos quando o reator funciona normalmente.

Esses produtos radioativos estão contidos em barras de urânio, que são o combustível nuclear e que, depois de um ou dois anos de uso, são retiradas e armazenadas, recebendo o nome de lixo radioativo. Usualmente elas são armazenadas em piscinas situadas ao lado dos reatores, como ocorre em Angra dos Reis. Em Chernobyl, parte das barras foi vaporizada, lançada na atmosfera e se espalhou pelas áreas vizinhas, e depois numa grande nuvem radioativa por toda a Europa.

Algumas dezenas de pessoas morreram no acidente. Mas doenças decorrentes da exposição à radioatividade, como leucemia, foram provocadas em milhares de pessoas e se estima que cerca de 10 mil acabarão morrendo de câncer como resultado da explosão de Chernobyl, no período de vida da geração que foi atingida (sobretudo crianças).

O acidente só não foi mais grave porque a radiação se espalhou numa vasta área. Na própria usina, seu nível era tão alto que os bombeiros e outros técnicos receberam doses letais de radiação em alguns minutos.

Acidentes ocorrem todos os dias e o que cabe analisar é o que diferencia o de Chernobyl de outros (como a queda de aviões) e quais foram as suas conseqüências.

A primeira - extremamente negativa - é que elas atingem não apenas as vítimas diretas, mas também milhões de pessoas situadas a grandes distâncias e que poderão sofrer as seqüelas da exposição à radioatividade muitos anos depois - até mesmo seus descendentes poderão ser atingidos.

A segunda é que o acidente forçou uma reanálise do papel que a energia nuclear deve ter na sociedade moderna como fonte de energia e a busca de alternativas. O horror provocado pelo acidente de Chernobyl reavivou a memória do holocausto de Hiroshima e Nagasaki e contribuiu para pôr um freio na expansão de energia nuclear no mundo todo: desde 1986 não foi iniciada a construção de nenhum reator nuclear nos Estados Unidos e em vários países da Europa, como a Alemanha e a Suécia, decidiram desativar ao longo dos anos os que possuíam; outros abandonaram esta opção, como a Itália.

Por essa razão, a indústria de construção desses reatores atravessa uma grande crise há 20 anos. Só nos Estados Unidos é que se tenta, agora, fazer "renascer" a energia nuclear, alimentada por grandes subsídios.

A terceira são as conseqüências políticas na União Soviética (URSS). São muitos os que acreditam que o desastre de Chernobyl tenha influído decisivamente na decisão do então secretário-geral do Partido Comunista, Mikhail Gorbachev, de tentar abrir a sociedade soviética por meio da "perestroika".

A dimensão do problema mostrou à população soviética que o todo-poderoso governo autoritário da União Soviética era incapaz de protegê-la. Em contraste, quando ocorreu um pequeno vazamento de radioatividade nos Estados Unidos, no reator de Three Mile Island, vários anos antes, toda a população foi alertada imediatamente e protegida. O próprio presidente Jimmy Carter se deslocou para o local do acidente para tranqüilizar as famílias atingidas. A incompetência que deu origem ao acidente de Chernobyl e a maneira canhestra como a burocracia soviética lidou com ele convenceram muitos de que não se estava enfrentando um "acidente", como uma colisão de trens, mas que o sistema era culpado por ele.

Como se sabe, demorou quase uma semana para que as autoridades soviéticas admitissem as proporções reais do problema, e isso só depois que altos índices de radioatividade foram detectados na Suécia e em outros países da Europa. O próprio acidente, que se deveu a falhas humanas - já que os próprios técnicos desligaram os sistemas de alerta -, mostrou a todos a falta de disciplina e a irresponsabilidade do aparato governamental.

É possível argumentar - e isso tem sido feito com freqüência - que o problema de Chernobyl só aconteceu porque o reator era de um tipo diferente dos reatores usados nos Estados Unidos e nos demais países do Ocidente e que se trata, portanto, de um problema dos soviéticos, e não da energia nuclear.

De fato, os reatores nucleares americanos são mais seguros que os de Chernobyl, mas nunca se pode dar garantias completas de que acidentes não venham a ocorrer com eles - colisões de trens acontecem até na Suíça!

A principal lição de Chernobyl, contudo, não é de natureza técnica ou de uma comparação das vantagens dos reatores ocidentais sobre os dos soviéticos. A lição é a de que produzir grandes quantidades de radioatividade - um fato novo na História da humanidade que só surgiu no século 20 - criou novos problemas e um novo tipo de morte dela decorrente (por câncer). Falar em nome do progresso econômico e de sucessos tecnológicos não é algo que se possa aceitar sem restrições e energia nuclear nos faz pensar em que tipo de civilização desejamos para nossos filhos.

José Goldemberg é secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo


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